segunda-feira, 13 de julho de 2015

Flutuação - As vontades do corpo

O Miguel Domingues experimentou pela primeira vez uma sessão de flutuação e gostou tanto que nos enviou este texto, que aqui publicamos a relatar a experiência. Obrigado Miguel!

"As pernas pesavam-me da noite anterior. Como a cabeça, como o corpo, como a manhã que se levantara como eu, lenta, arrastada, cinzenta. Ninguém a diria de verão.. Na sala ainda sobravam os copos do jantar. Na cabeça ainda ecoavam as conversas e os risos. A noite dos meus anos fizera-se comprida e as horas de sono curtas. Era domingo e na agenda não havia planos, a não ser um lanche em casa de um primo “sem obrigação, aparece se quiseres”. Àquela hora e àquele estado pensei que não, não ia querer.

Arrumei a custo os restos da noite, tomei um banho e um pequeno almoço adiantado na hora e no conteúdo. Saí para tomar um café, na esperança de despertar e ganhar coragem para o tal lanche. Talvez valesse a pena.


A rua estava desagradável. O céu grisalho e o vento frio. Voltei para casa, com a ideia de passar uma tarde entre filmes e sestas. Era domingo e, para um ateu como eu, aos domingos não há obrigações que não sejam a de fazer as vontades ao corpo. Dei uma vista de olhos aos presentes que recebera. Livros, garrafas de vinho, algumas já vazias, um cinto que não fazia o meu estilo, o inevitável CD que a minha mãe insiste em dar, ainda que já não tenha leitor de CD's em casa. Achei curioso e original o presente da minha irmã Ana. Um voucher para uma sessão de flutuação num Spa – Float in.

A Ara dera-me uma breve explicação do que era, mas a curiosidade levou-me a saber melhor do que se tratava. No site do Float-in li a frase que mexeu com o meu estado “deixe a fadiga dar lugar à energia”. Decidi experimentar. “O domingo é para fazer as vontades ao corpo”, lembrei-me. Vi que Float in estava aberto aos domingos e era no Rato, a 10 minutos a pé de minha casa. Telefonei, havia vagas. Parti para um domingo diferente.

Entrei e descobri um espaço que me levava ao oriente, calmo e de bom gosto. Staff simpático e pronto a esclarecer todas as dúvidas. Explicaram-me todos os detalhes, que devia tomar um banho antes e outro depois da sessão de flutuação e que para isso tinha na sala um chuveiro e todos os produtos de higiene que precisasse e deram-me a escolher entre o flutuário aberto e o fechado, estilo “cápsula espacial”.

Queria estar isolado, desligar do mundo, do barulho, da agitação, do exterior. Escolhi o flutuário fechado e segui as indicações do staff. Tomei um banho e entrei por fim na “cápsula”. Uma água a 36 graus, entre o morna e o quente. “Agradável”, foi o adjectivo que me veio à cabeça. Deitei-me, pus a almofada insuflável na cabeça, tentei relaxar e entreguei-me às sensações...

Com uma luz encarnada, ténue, aos pés e, algures, uma música suave e envolvente, acolhi-me facilmente àquele ambiente diferente de tudo o que havia sentido antes.
Fechei os olhos e abri os sentidos aos sentimentos da pele. Estranhou a pele, mais que eu, aquele primeiro impacto, aquele primeiro toque. A água era salgada
 e os dois cortes que tinha nas mãos sentiram o sal entrar por eles a dentro. Os poros saboreavam também aquela água como quem prova sushi pela primeira vez, sem saber o que dizer... Deixei os poros saborear, sentir, conhecer aquele novo “banho” e passados cinco minutos, já sentiam a água como quem come sushi pela segunda vez: fãs convertidos. E os cortes das mãos? Já não os sentia, nem eles se lembravam de existir..

Por fim, apaziguado o corpo, restava-me apaziguar a mente e o espírito. Levei tempo, a vida é difícil de apaziguar na nossa cabeça. Lembrava-me de histórias passadas, de preocupações da semana que vinha, de listas de tarefas, de amigos de hoje e de amigos de sempre. Pensava em tudo o que pensamos quando temos tempo e nada mais em que pensar. Comecei a sentir medo do tempo. Do tempo que ali estaria, do tédio. Como aguentaria tanto tempo? Eu, sempre com tarefas, programas, amigos, afazeres. Eu que sempre fugi do aborrecimento como um gato da água. Ali estava com mais meia hora de “solidão em banho Maria” pela frente. Vieram-me à cabeça mais amigos, mais conversas, mais planos. E o tédio, o medo do tédio novamente. Afastei o medo do pensamento e decidi aprofundar a minha flutuação. Com um botão atrás da minha cabeça apaguei a luz  e, no escuro, apaguei os pensamentos do pensamento.

Flutuei então, na água, nos sentidos, nas sensações. Flutuei nas tarefas, no tempo, na vida. Não sei quanto tempo ao certo. O tempo do que sentimos não é igual ao tempo com que vivemos. Não se mede em minutos ou horas. Mede-se em estados. E o estado em que me sentia não tinha tempo real que o medisse. Nem preço.


Acenderam-se por fim as luzes e levantou-se a tampa do flutuário. Era o mundo real, o dos deveres, que voltava a chamar por mim. Saí, tomei um banho, vesti-me e encaminhei-me para a saída. Agradeci e do staff tive de volta a simpatia de quem gosta de receber. Saí e esqueci-me da idade que tinha. Senti-me dias, meses, anos mais novo. Andava com a leveza de quem não tinha o peso das preocupações e da idade em cima. Andava com a leveza de quem havia dormido 10 horas desono profundo.Já não era o mesmo homem, arrastado e lento que entrara no Float in.

Fui até casa e agarrei na chave do carro. Sempre ia ao tal lanche, “sem obrigação”. Afinal, os domingos sempre foram para fazer as vontades ao corpo...



Miguel Domingues"